gotejamento



Passageira estranha sentada ao lado meu, és feliz?
Este brilho inatural no teu dedo é a tua felicidade ou a tua ruína?
Pra onde olhas que nada pareces ver?
És no fundo tão miserável quanto eu?
É a tua vida tão vazia quanto a minha?
Onde está o furo por onde vaza a minha felicidade?
Ajuda-me a remendá-lo, doce estranha com coque no alto da cabeça;
Ajuda-me a fugir de mim,
A escapar inteira por esse furo invisível de onde me sinto gotejar lentamente.

E tu, triste mulher com grandes cicatrizes,
És mais feliz ou menos feliz?
Tivesse o teu corpo tantas cicatrizes quanto minha alma,
Conseguirias ainda sorrir?

Por que todos olham pela janela?
O que há de novo para ver?
O mundo é o mesmo.
Falsa ilusão de que tudo muda.
O mundo é o mundo desde o inicio do mundo.
Nós somos mera poeira soprados eternidade adentro.
E mesmo entre nós tudo é sempre igual, alheio e distante.
Não há nunca nada de novo
Sequer a vontade ancestral da busca pelo desconhecido é nova.
Triste entediante ciclo de repetição a que fomos destinados.

Tédio, tédio.
Cansaço, querido cansaço, acalenta meu agitado espirito.
Noite escura, esconde minha dor.
Motorista apressado, por que corres tanto?
Pra onde vais assim tão vorazmente?
Não vês que tua pressa é inútil?
Que obedecemos todos a um ritmo maior?

Sentir. Que falta faz sentir.
Não quero que goteje também o derradeiro sentimento que me resta
Não deixe vazar também minha dor.
Sem ela não me sentirei mais sequer humana
Serei mero fardo de órgãos e músculos e ossos e consciência.
Não quero ser reduzida a isso.

Mas é muito tarde.
Não sinto dor, nem felicidades, nem amores.
Fui embora de mim aos poucos, nem percebi;
Só ficou essa vontade anestesiada
Que não é nem de vida nem é de morte.
E nem eu sei do que é.