das memórias perdidas


Era um poço no alto de uma montanha, e, como todos os poços, havia algo de mágico nele: senão um poço de desejo o simples fato de jorrar água das entranhas da Terra.
No entanto este poço de desejos não era e moeda alguma ali faria efeito. O poço era das memórias.
Era modesto e pouco visitado, com suas bordas corroídas pelo tempo e sua aparência singela que só as coisas realmente especiais têm.
Se você se punha a observar, veria os viajantes cansados e com grandes mochilas cheias de vida e tempo nas costas encurvadas, que por ali passavam. Eles chegavam, lavavam os rostos suados e em seguida vinha à decisão: quereriam abrir mão de uma memória? Seria ela doce? Latente? Seria amarga? Teria o viajante coragem de abrir mão de parte de si para sempre?
Este era o preço que o poço cobrava: em troca da paz e do esquecimento deveríamos abrir mão de uma preciosa memória.
Não culpemos o poço. Era a fonte de vida dele, acorrentado como estava no topo daquela montanha solitária. Como poderia viver e desabrochar em águas sem estimulo algum? Ele bebia das memorias dos viajantes como estes bebiam de suas águas.
Então ela, que só observava à distância, viu que àquela hora o poço estava vazio. Aproximou-se e olhou para dentro e só o que pôde ver foi dentro de si mesma e toda sua vida foi como que revivida. Todas as dores, todos os amores, derrotas e vitórias, conquistas e perdas. Então ela se deu conta que aquilo tudo nada valia. Era só peso e dor.
Ela se ajoelhou diante do poço e encostou sua cabeça em sua borda fria e pensou na sua memória mais linda. Ela se agarrou aquela simples memória e mergulhou inteira no poço. Este a envolveu com suas águas e a possuiu como ela jamais havia possuído a si mesma.
Deixou-se lavar de toda a sua vida até então, mas de uma única memória ela não abriria mão, de resto ela queria apagar-se inteira.
Uma a uma ela sentia sair de si uma coisa vivida, como um fio finíssimo saindo do fundo de sua alma, e a cada fio retirado ela foi-se sentindo leve e ligeira como uma pluma. “Apenas uma”, ela sussurrava, “apenas desta eu não posso abrir mão”.
Ela se viu, então, nua de si e da vida que vivera até então dentro de um poço qualquer. Em paz, ela levantou-se e seguiu seu caminho com uma única memória a deleitá-la: duas meninas com os olhos cheios de esperança, uma deitada sobre o colo da mais nova que recitava uma poesia e a outra escutava atentamente enquanto retirava o cabelo que teimava em cair nos olhos da primeira. E seguiram assim, pagãs inocentes a ler poesia sem esperar por mais nada por todo o sempre.



- Roza Larissa


07/07/2014


Uma homenagem à minha eterna Suzana Pires, no dia que pude ler a última poesia para ela nesta vida: O Convite À Viagem de Charles Baudelaire.